Filosofia da Liberdade Por Rudolf Steiner
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Rudolf Steiner |
Verdade E Ciência
Prelúdio a uma “Filosofia da Liberdade” de Rudolf Steiner
Antroposofia / Prefácio à Edição Alemã
A filosofia da nossa época sofre de uma fé malsã em Kant.
Este livro pretende contribuir para superá-la.
Seria um sacrilégio diminuir os méritos imperecíveis desse homem em prol do desenvolvimento da ciência na Alemanha.
Mas devemos, afinal, dar-nos conta de
que só podemos lançar as bases de uma visão realmente satisfatória do
mundo e da vida se nos colocarmos decididamente em oposição a esse
espírito.
Qual foi o resultado alcançado por Kant?
Ele mostrou que a nossa capacidade
cognitiva não pode penetrar no fundamento das coisas situado além do
nosso mundo sensorial e racional, fundamento que seus precursores tinham
procurado por meio de moldes conceituais mal compreendidos.
Disso ele concluiu que nosso pendor
científico devia permanecer dentro do que pode ser alcançado pela
experiência, não podendo chegar a conhecer o fundamento primordial
supra-sensível, a “coisa em si”.
Mas o que seria se essa “coisa em si”, com todo o fundamento transcendente dos objetos, fosse apenas um fantasma?
É fácil perceber que a realidade é mesmo essa.
Pesquisar o âmago mais profundo das
coisas, desvendar os seus princípios primordiais, é um impulso
inseparável da natureza humana.
É o fundamento de toda atividade científica.
Mas não existe a menor causa para se
procurar esse fundamento primordial fora do mundo sensorial e espiritual
que nos é dado, enquanto uma pesquisa deste mundo, realizada em todos
os sentidos, não produz elementos a ele imanentes que apontem claramente
para uma influência de fora.
O nosso livro procura demonstrar que
por meio do nosso pensar se pode captar tudo que deve ser aduzido para a
explicaçao do mundo e a elucidação de suas causas.
A suposição de que existam princípios
do nosso mundo situados fora dele revela-se como preconceito de uma
filosofia que vive ilusoriamente em dogmas vãos.
Kant deveria ter chegado a esse resultado se realmente houvesse investigado para que fins o nosso pensar está disposto.
Em vez disso demonstrou, pelos
caminhos mais complicados, que não podemos chegar aos últimos princípios
situados além da nossa experiência, devido à configuração do nosso
poder cognitivo.
Mas se obedecessemos à razão, nem deveríamos deslocá-los para tal além.
Kant bem refutou a filosofia “dogmática”, mas sem nada colocar em seu lugar.
A filosofia alemã imediatamente
posterior desenvolveu-se portanto, de modo geral, em oposição a Kant.
Fichte, Schelling e Hegel nem se preocuparam com os limites do nosso
conhecimento abalizados pelo seu precursor, e procuraram os princípios
primordiais das coisas dentro do aquém da razão humana.
Mesmo Schopenhauer, não obstante sua
afirmação de que os resultados da critica da razão de Kant seriam
verdades para sempre inabaláveis, não deixa de enveredar por caminhos
diversos dos de seu mestre, para atingir o conhecimento das últimas
causas do Universo.
Foi a desdita desses pensadores terem
eles procurado o conhecimento das verdades supremas sem haver lançado o
fundamento para tal empreendimento através de investigação da própria
natureza da cognição.
Os imponentes edifícios das idéias de Fichte, Schelling e Hegel carecem, pois, de fundações.
A falta destas teve, por sua vez, um efeito nocivo sobre os raciocínios dos filósofos.
Desconhecendo a importância do mundo
das idéias puras e sua relação com a área da percepção sensorial, eles
amontoaram erros sobre erros, uma sobre outra unilateralidade.
Não é de admirar que seus sistemas
demasiadamente audaciosos não hajam conseguido resistir às tempestades
de uma era hostil à Filosofia, e muito do que continham de bom haja sido
impiedosamente varrido junto com o mau.
As investigações que seguem pretendem remediar uma falha aludida no texto precedente.
Não desejamos, como fez Kant, expor o
que o poder cognitivo não é capaz de realizar, mas, sim, mostrar o que é
realmente habilitado a fazer.
O resultado destas investigações é
que, contrariamente à suposição geralmente aceita, a verdade não é uma
reflexão imaterial de algo real, mas um produto livre do espírito
humano, não podendo existir de forma alguma e em nenhum lugar se nós
mesmos não o produzíssemos.
A tarefa da cognição não é repetir,
sob forma conceitual, algo que já exista alhures, mas, sim, criar um
campo inteiramente novo que apenas constitua a plena realização em
combinação com o mundo sensorial dado.
Com isso a atividade suprema do
homem, seu ato criador espiritual, acha-se organicamente integrado ao
decurso geral dos fatos no mundo.
Sem essa atividade nem poderíamos pensar nesse decurso dos acontecimentos como uma totalidade definida em si.
Frente à seqüência dos fatos, o homem
não é um espectador ocioso que reproduz em sua mente, sob forma de
imagens, aquilo que ocorre no cosmo sem a sua intervenção, mas sim o
co-criador ativo do processo cósmico; e a cognição é o membro mais
perfeito no organismo do Universo.
Desta concepção é conseqüência
importante, para as normas do nosso agir e para os nossos ideais morais,
o fato de estes tampouco poderem ser considerados como a imagem de algo
exterior a nós, mas como algo existente somente dentro de nós.
Com isto é igualmente negada a existência de uma potência cujos mandamentos deveriam ser as nossas leis morais.
Desconhecemos um imperativo categorico como que uma voz do Além a nos prescrever o que deveríamos ou não fazer.
Os nossos ideais morais são livremente produzidos por nós próprios.
Só devemos executar o que nós mesmos nos impomos como norma para a nossa atuação.
A visão da verdade como sendo um ato
de liberdade fundamenta, pois, também uma ética cuja base é a
personalidade totalmente livre.
Essas sentenças só se aplicam,
obviamente, àquela parte do nosso atuar cujas leis compreendemos em seu
conteúdo ideal, através de um conhecimento perfeito.
Enquanto essas leis não passam de
motivos naturais ou conceitualmente confusos, alguém espiritualmente
superior a nós reconheceria em que medida tais leis do nosso agir têm
seu fundamento dentro da nossa individualidade; nós próprios, porém,
temos a sensação de que atuam sobre nós a partir de fora, coagindo-nos.
Cada vez que conseguimos penetrar tal motivo reconhecendo-o claramente realizamos uma conquista no campo da liberdade.
No que se refere ao problema do
conhecimento, o leitor verá, pelo próprio conteúdo deste livro, a
posição das nossas idéias em relação à figura filosófica mais
significativa do nosso tempo, isto é, a cosmovisão de Eduard von
Hartmann.
É para uma Filosofia da Liberdade que este livro constitui um prelúdio.
A mesma deverá seguir brevemente, de forma pormenorizada .
Elevar o valor da existência da personalidade humana é a meta final de toda ciência.
Quem não se dedica a esta última
intenção, só trabalhando porque viu seu mestre fazê-lo, só “pesquisa”
por havê-lo casualmente aprendido.
Não poderá ser chamado de ‘pensador livre”.
O que confere às ciências o verdadeiro valor é somente a exposição filosófica do significado humano de seus resultados.
Pretendi fazer uma contribuição para essa exposição.
Mas talvez a ciência atual nem esteja procurando sua justificação filosófica!
Neste caso, ficam patentes dois
fatos: primeiro, o de haver eu escrito um livro desnecessário; e
segundo, o de estar a erudição moderna pescando em águas turvas,
ignorando o que quer.
Ao terminar este prefácio, não posso omitir uma observação de natureza pessoal.
Até esta altura sempre expus minhas
idéias filosóficas relacionando-as com a cosmovisão de Goethe, à qual
fui introduzido por meu venerável mestre Karl Julius Schröer, que ocupa,
a meu ver, uma posição de destaque na pesquisa de Göethe, por voltar
seu olhar sempre para as idéias, elevando-se acima dos detalhes.
Espero mostrar, com esta obra, que o
edifício de meus pensamentos constitui um todo fundamentado em si mesmo,
não necessitando ser deduzido da cosmovisão goethiana.
Minhas idéias, tais como são
apresentadas nesta obra e como serão expostas mais tarde como Filosofia
da Liberdade, surgiram no decorrer de muitos anos.
Desejo acrescentar, com um sentimento
de profunda gratidão, que a elaboração das minhas idéias teve por
ambiente ideal e único o acolhimento carinhoso que tive em Viena por
parte da família Specht, durante o tempo em que estive incumbido da
educação dos filhos; desejo ainda acrescentar que devo a atmosfera em
que foi dado burilar definitivamente certas idéias da minha “filosofia
da liberdade”, às conversas estimulantes com minha estimada amiga Rosa
Mayreder em Viena, cujos trabalhos literários, obra de uma personalidade
artística delicada e distinta, serão provavelmente publicados den tio
em breve.
Viena, início de dezembro de 1891
Dr. Rudolf Steiner